A excepcionalidade do momento pandêmico nos tem imposto diversas situações que restringem nossa liberdade. Afinal a vida é o pressuposto para a manutenção e o exercício de toda e qualquer liberdade. É possível inclusive que as eleições municipais de outubro sejam adiadas, mas isso não deve jamais significar uma restrição democrática do nosso regime, forma estatal suprema que defende a vida, a liberdade e a saúde da população. Há aí uma dialética entre o momento excepcional que vivemos e a reafirmação da democracia por meio das eleições.
O pressuposto democrático máximo é o poder do povo. Tanto o é que o artigo primeiro da nossa Constituição Federal já contém em si o sustentáculo de nossa República: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ora, a base da República está em sua formação indissolúvel entre os entes por um lado e as formas de exercício do poder do povo, por outro. A democracia se caracteriza propriamente por ser um governo do povo, pelo povo e para o povo, no qual os interesses de uma minoria política são igualmente valiosos aos interesses da maioria política.
Essa é, justamente, a razão de ser desse regime! Na democracia existem em mesmo nível de prioridade e importância a defesa dos interesses de todos: das maiorias às minorias políticas. Daí que em um regime democrático podem — e devem — coexistir valores, grupos e interesses plurais.
E o exercício democrático fundamental que garante esse poder é o voto. É esse o ato cívico, ético, político e democrático que a população exerce a cada dois anos desde a Constituição de 1988. Esse é o meio pelo qual a liberdade do povo se exerce na eleição dos seus representantes políticos que legislam e exercem a administração pública em nome e segundo os interesses do povo.
Tomando essa concepção principiológica, devemos sempre levar em consideração que nossa democracia é ainda muito jovem, está em processo de maturação e consolidação. No ano passado, nosso Estado Democrático de Direito completou tão somente três décadas, enquanto diversos países pelo mundo comemoram séculos democráticos. O que quer dizer precisamente que o exercício democrático eleitoral periódico, como hoje funciona, com a ida às urnas pelo cidadão a cada dois anos, em hipótese alguma pode ser suspenso, sob pena de promover a ruptura do processo de consolidação de nossa democracia e do pacto democrático que coletivamente aceitamos instituir. A excepcionalidade da saúde pública que atravessamos não pode se tornar uma excepcionalidade política. Ora, a excepcionalidade política sempre foi sinônimo de estados autoritários, muito condizente com ditaduras como a que vivemos no Brasil no pós 1964.
De modo que a discussão de adiamento das eleições municipais deste ano só pode estar no campo do mínimo adiamento possível para que seja condizente com a manutenção da saúde pública e jamais deverá recair na trágica hipótese de junção com as eleições gerais de 2022 sob o argumento de facilidade ou de economia para os cofres estatais.
Vejam, este último argumento toma como princípio uma nova racionalidade do mundo: a racionalidade neoliberal. Nas últimas décadas essa lógica do capital foi permeando todas as esferas de nossa existência, mercantilizando todos os aspectos da vida humana. Essa sistematização se dissipou na vida dos cidadãos, no exercício de seus direitos, chegando, enfim, também na política. O problema é que nem tudo pode ser pensado segundo um modelo empresarial, que visa o lucro. Ou seja, há a pressão de uma racionalidade para que todas as decisões governamentais sejam tomadas segundo os interesses econômicos. De modo que alguns defendem que o Estado teria menores gastos — e, logo, menos prejuízo — se as eleições municipais e gerais fossem reunidas em um só evento, em 2022. Ocorre que essa solução pode ser economicamente viável, mas consistiria no mais cabal erro no cálculo democrático. E esse erro colocaria nossa democracia por inteiro em risco.
Muito além de ser o consenso da maioria, a democracia é o regime que possui duas grandezas inestimáveis: a participação igualitária de cada pessoa na construção da coletividade e a defesa dos direitos, garantias e liberdades individuais fundamentais. Na conversão dessas grandezas que uma sociedade constrói e goza do Estado Democrático de Direito. Esses valores estão em primeiro plano custe o que custar.
Certamente o momento nos exige um plano de defesa da saúde coletiva de toda a população, mas isso não pode custar a nossa democracia, que é também a forma política que nos permite defender o bem comum e coexistir em pluralidade. Que as eleições sejam adiadas, portanto, no estrito prazo necessário exigido pelos especialistas da saúde.
*Nara Bueno é advogada especialista em Direito e Processo Eleitoral
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